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ARTIGO OPINATIVO – O futuro do rugby profissional do Hemisfério Sul segue sendo debatido com afinco na Oceania e na Nova Zelândia. Neste mês, o “Aratipu Report”, dossiê feito pela New Zealand Rugby (a federação neozelandesa) sugeriu que uma eventual liga envolvendo times da Austrália e Nova Zelândia substitua o Super Rugby para esses países. Porém, tal documento sugeriu que no máximo 3 times australianos deveriam ser incorporados à competição, por conta do baixo nível técnico das equipes da Austrália atualmente. Tal constatação não agradou os australianos, como esperado, e agora os dois vizinhos estão em rota de colisão, em uma negociação tensa que não parece agradar nenhum dos lados.
A proposta de uma liga Trans-Tasmânica (de Austrália e Nova Zelândia) significa o fim da parceria da Oceania com a África do Sul, o que também não agrada a muitos na Nova Zelândia. Para os neozelandesas, os Springboks são os maiores rivais, porque os sul-africanos são historicamente mais fortes no rugby que os australianos (há mais de um século enfraquecidos pela força do League), e os neozelandeses sabem que jogos regulares com os sul-africanos beneficiam a evolução de seus jogadores. Por outro lado, os australianos sabem que economicamente os neozelandeses não podem caminhar sozinhos, por serem uma economia pequena, e sabem que a Austrália é a solução mais lógica para a Nova Zelândia fazer negócios.
Tanto Austrália como Nova Zelândia gostariam de uma proximidade com o Japão, pois o rugby japonês oferece dinheiro e audiência muito grandes. No entanto, a aliança com os japoneses foi prejudicada pela resistência sul-africana (temerosa do aumento de viagens) e, após o sucesso da Copa do Mundo de 2019, o Japão já percebeu que pode seguir os passos da França e ter uma liga nacional forte, rica, que compre grandes jogadores, sem depender de aliança com nenhum outro país. O Japão, antes da Copa do Mundo, já era dos países com mais fãs de rugby no mundo, pois o esporte é muito grande no país no nível escolar. Faltava os japoneses superarem seu apego ideológico ao amadorismo (traço que dividem com as argentinos).
Neste momento, os sul-africanos pouco estão falando sobre o assunto. Há muito tempo fala-se na possibilidade da África do Sul migrar de vez para a Europa, com Bulls, Lions, Sharks e Stormers seguindo os passos de Cheetahs e Kings indo para o PRO14 (a antiga Liga Celta, criada por Irlanda, Gales e Escócia). A África do Sul sabe que tem opções na manga e por isso analisa o cenário com cautela. Por um lado, sabe que a Europa oferece um fuso horário muito melhor para as viagens de suas equipes e para as transmissões de seus jogos, concentrando mais dinheiro. Por outro lado, os sul-africanos também se veem presos à vontade de seguirem enfrentando os neozelandeses, para o bem de sua evolução técnica, mas ponderam o atual caos no Super Rugby – além de, historicamente, se sentirem prejudicados no Super Rugby, porque suas equipes sempre viajam mais que australianos e neozelandeses ao longo do ano. Em tudo isto, a maior prejudicada é a Argentina, que está vendo os Jaguares isolados e com um futuro cada vez mais incerto.
Mas, em suma, o que podemos concluir a partir de tal imbróglio?
As ligas transcontinentais estão em xeque
Talvez esta seja a grande questão no momento. O Super Rugby se construiu como uma liga transcontinental, pela vontade de Austrália e Nova Zelândia se aproximarem da África do Sul – e vice-versa. O projeto nasceu com o rugby se tornando profissional no mundo (1995) e estava de vento em popa até os anos 2000, mas a crescente pressão econômica do rugby europeu e de seus próprios mercados internos (as regiões sem equipes) começou a impor a necessidade de que o Super Rugby se expandisse. Isso significou uma política desastrosa de criação de novas equipes que trouxeram problemas de sustentabilidade.
No fundo, os problemas trazidos pelo Super Rugby me parecem esperáveis quando se monta uma competição transcontinental. Unir países diferentes, economias diferentes com moedas diferentes, com filosofias de trabalho e propostas esportivas distintas, é sempre uma operação arriscada para uma liga de longa duração. Competições de seleções nacionais podem se dar a tal luxo, mas clubes/franquias têm problemas extras, pois precisam de receitas que paguem salários de modo competitivo com os concorrentes. Isto é, o Super Rugby precisa lidar com a pressão de clubes japoneses, franceses e ingleses, além de pagar suas próprias contas.
Além disso, ligas que impõem longas distâncias sofrem com o problema dos fuso horários, que afetam transmissões e, consequentemente, o público. E, acima de tudo, grandes deslocamentos desgastam os atletas física e mentalmente, pelo incômodo da viagem (que afeta o descanso pós e pré jogo), pelas mudanças de horário (que afetam o corpo e a mente) e pelos longos períodos longe de casa (que trazem desgaste psicológico). O rugby é um esporte que precisa se importar com o bem-estar do atleta e cruzar continentes constantemente não ajuda nesse sentido.
Mais importante ainda, ao juntar países de economias distintas, é preciso um profundo alinhamento dos stakeowners da liga (das entidade, federações e times, que são donos da competição) do ponto de vista comercial, para gerir a liga como um produto, isto é, ter a liga (a competição como um todo) como produto. Quando o foco não é a própria liga, obviamente o valor do produto não é melhor. Quando os parceiros divergem sobre os interesses, a relação se deteriora e a capacidade de fazerem bons negócios juntos é corroída. Ligas precisam de unidade e quando há interesses conflitantes tudo piora.
Por fim, a pandemia ainda nos trouxe a certeza de que depender de longos deslocamentos torna qualquer competição vulnerável a um mundo globalizado que transforma crises inicialmente locais rapidamente em crises globais.
Quando a África do Sul pensa em trocar Super Rugby por PRO14 como solução, ela está sendo otimista – e eventualmente trocando “seis por meia dúzia”. A solução para todos os países do rugby não passa por grandes ligas que cruzem continentes. Cruzar continentes pode ser algo bom para competições de tiro curto que, em caso de crises, possam ser remanejadas. Em última instância, competições transcontinentais não podem ser o esqueleto do calendário – elas podem existir como complementos ao calendário, sempre como torneios de tiro curto.
Soluções locais, sem eliminar o apetite global
Isso tudo não impede que ligas transnacionais não sejam interessantes. “Transnacionais” são ligas que unem times de países diferentes. Mas as ligas transnacionais plausíveis são aquelas entre vizinhos que já têm relações político-econômicas estreitas (ligas dentro da Europa, dentro do Mercosul, entre Austrália-Nova Zelândia, Estados Unidos-Canadá). É isso que as difere de ligas “transcontinentais” (que juntam continentes distintos) que antes critiquei.
As copas continentais de vários esportes são exemplos positivos. O futebol pode fazer uma Libertadores ou uma Champions League, mas a base do calendário são os campeonatos nacionais.
Com isso, penso que o futuro do rugby profissional passe muito mais pela construção de ligas mais locais. É preciso que Austrália e Nova Zelândia se entendam. É preciso que o PRO14 olhe mais para a Europa e não para fora dela. É preciso que a África do Sul volte a construir estruturas mais sólidas internamente, adicione valor à sua Currie Cup. Tais países precisam construir calendários que respeitem a saúde dos atletas, o interesse dos fãs.
Quando se fala num Mundial de Clubes, essa pode ser uma saída interessante para o apetite por competições maiores. Reunir pontualmente os melhores times de cada liga (os melhores do PRO14, do Top 14 francês, da Premiership inglesa, da liga japonesa, da Superliga sul-americana, da MLR norte-americana, de uma Currie Cup sul-africana ou de um novo Super Rugby trans-tasmânico), sem banalizar tais eventos. Um torneio de um ou dois meses no máximo, remanejável em caso de crise, sim. Mas a base do calendário precisa ser local.
Isso significa não o fim do Super Rugby como necessidade. Talvez ele precise se repensar de modo mais local, antes de passar a uma fase final transcontinental. Sempre gostei do Super Rugby, mas sempre soube que a proposta de cruzar continentes regularmente era um problema que uma hora estouraria. O paradigma terá que mudar.