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ARTIGO OPINATIVO – A Premiership inglesa está no centro das atenções após o fundo de investimentos CVC comprar os direitos de explorar comercialmente a liga. A CVC era investidora da Formula 1 e agora aposta no rugby inglês de clubes, que passa por dificuldades financeiras. O fundo acredita que a liga poderá ser mais lucrativa e as ambições são altas, com a Premiership pretendendo levar jogos à China e aos EUA e se tornar uma competição acompanhada globalmente.
Porém, um dos maiores atritos da Premiership com a RFU, a federação inglesa, é o sistema de promoção e rebaixamento. Mas por quê?
- A Premiership é a 1ª divisão profissional da Inglaterra e a liga é a responsável pela competição. Hoje, os 12 clubes da 1ª divisão e o London Irish da 2ª divisão são os 13 donos da Premiership;
- Já a 2ª divisão profissional, o Championship, é todo organizado pela RFU, a federação inglesa, e dentro do acordo entre RFU e Premiership está o sistema de promoção e rebaixamento, com 1 time todo ano sendo rebaixado;
- Nos últimos anos ficou claro o abismo existente entre os clubes das duas divisões, com a 2ª divisão sendo deficitária e vivendo no limite do profissionalismo. A tendência recente é de haver poucas mudanças nos clubes que participam da Premiership, com o último rebaixado tendendo a subir. Por isso, a Premiership alega que a Inglaterra só tem 13 clubes realmente profissionais capazes de jogar a 1ª divisão e que, por isso, a liga deveria ser fechada, com 13 clubes, sem rebaixamento;
- O exemplo usado para provar o argumento é o London Welsh, clube que jogou 2 vezes a Premiership nos últimos 6 anos e foi rebaixado em ambos, indo à falência em 2017. Antes do London Welsh, o Leeds Carnegie havia jogado a Premiership e hoje está à beira do rebaixamento à 3ª divisão. Apenas outros 5 clubes jogaram a Premiership na era profissional, mas todos nos primeiros anos da competição e deles apenas o Richmond está na 2ª divisão hoje, com o destino dos demais sendo as divisões amadoras;
O contra argumento principal na Inglaterra para a defesa do profissionalismo, no entanto, parece mais forte. Em 2010, o Exeter Chiefs foi promovido pela primeira vez em sua história e se tornou uma potência, sendo exemplo de um clube pequeno que trilhou o caminho do desenvolvimento de forma correta. Além dele, o Worcester Warriors é outro exemplo de sucesso de clube que ascendeu e vem se mantendo.
Para mim, o sistema de rebaixamento é a essência de qualquer esporte que se baseia em clubes e permite uma natural evolução da modalidade dentro de um país, permitindo que projetos nasçam e cresçam livremente, isto é, dando a chance de clubes menores terem ambição e trabalharem livremente por seus objetivos. E permite que a evolução do esporte siga um curso compatível com sua realidade.
O melhor exemplo do que falo está na liga que rivaliza e hoje supera a liga inglesa comercialmente: a liga francesa, o Top 14, que oferece exemplos que a Premiership devia aprender a ler com mais atenção:
- Na França, a liga governa também a 2ª divisão, a Pro D2. Isto é, 1ª e 2ª divisões, Top 14 e Pro D2, são governados pela mesma entidade (a LNR, a liga) e, com isso, a evolução da 2ª divisão e de seus clubes é de interesse da coletividade, inclusive dos clubes da 1ª divisão. Ao contrário do que ocorre na Inglaterra, jogar a 2ª divisão não é uma morte financeira;
- Tal sistema permitiu o crescimento livre de clubes que até pouco tempo estavam na 2ª divisão e hoje são reais competidores no Top 14. A lista impressiona:
- O Lyon estava na 2ª divisão até 2016 e jogou o mata-mata em 2018;
- O La Rochelle subiu em 2014 e terminou o Top 14 em 1o lugar na temporada regular em 2017;
- O Bordeaux foi promovido apenas em 2011 e hoje tem a maior média de público da Europa;
- O Racing foi promovido em 2009 para ser campeão em 2016 e vice europeu em 2018;
- O Toulon subiu em 2008 para ser tricampeão europeu entre 2013 e 2015;
- O Pau foi promovido em 2015 e não caiu mais;
- Nada menos que 34 clubes diferentes na França jogaram a 1ª divisão na era profissional (desde 1995);
Na França, o crescimento e dinamismo do Top 14 levaram a uma natural substituição de clubes de cidades pequenas por clubes de cidades grandes, seguindo a evolução do mercado. Saíram times tradições mas de mercados pequenos como Dax, Auch, Albi e Montauban para ascenderem cidades grandes como Lyon, Bordeaux, Toulon (Riviera Francesa) e uma segunda equipe em Paris (Racing).
Na Inglaterra, das 10 maiores cidades, apenas Londres (com 2 times, Saracens e Harlequins), Newcastle e Bristol estão representadas na Premiership. O Sale Sharks poderia ser incluído na lista por ser subúrbio de Manchester, mas o clube jamais quis se associar à cidade vizinha mais poderosa. Liverpool, Birmingham, Leeds, Sheffield, Southampton, Nottingham, Brighton, todas cidades importantes, são órfãs de Premiership Rugby. Já cidades fortes no rugby, como Bath, Gloucester, Exeter e Northampton, não oferecem mercados grandes para a saúde financeira da liga, ainda que sejam apaixonadas.
A França prova com Castres, cidade de menos de 100 mil habitantes, que clubes de cidades pequenas têm sim espaço no rugby profissional. Portanto, comunidades apaixonadas como Bath e Gloucester, não devem temer o sistema de promoção e rebaixamento.
A LNR francesa governa 2 divisões que juntas compõem 30 clubes (Top 14, com 14, e Pro D2, com 16):
- Na Pro D2 a média de público é superior a 5 mil torcedores, com 5 clubes passando a marca dos 6 mil;
- Nada menos que 4 clubes da Premiership inglesa têm médias de público inferiores a clubes da Pro D2 francesa;
- Já o Championship inglês tem média de público inferior a 2 mil pessoas por jogo, com o London Irish, dono da melhor média de público, tendo público inferior a 12 dos 16 clubes da Pro D2;
- O clube de pior público da Pro D2 (o Massy) é superado por apenas 3 clubes do Championship, e por pouco;
O rugby inglês se tornou vitima de sua própria incapacidade em criar e gerir uma 2ª divisão saudável e de promover o rugby em mercados grandes onde antes ele não era forte. A solução de mais curto prazo é fechar a liga e chutar alto acreditando que fará dinheiro nas “terras prometidas” de EUA e China, quando nem em suas próprias metrópoles a ovalada inglesa vem conseguindo criar o mercado que desejava.
A CVC vai vender a ilusão do curto prazo aos desesperados clubes ingleses que estão operando no vermelho, incapazes de competir com o Top 14 francês. Afinal, a CVC quer os lucros imediatos, como conseguiu com a Fórmula 1. Mas a aposta não fará bem internamente ao rugby inglês. É um trabalho de curto médio prazo desenvolvendo o Championship que solidificará a Premiership como, primeiramente uma liga forte dentro do cenário esportivo inglês para, aí sim, ganhar o mundo, dando o salto lógico e natural em seu momento certo.
Hoje, seria mais lúcido expandir a competição para 14 times. O 14º clubes estaria sensivelmente abaixo dos demais, mas os passos dados por Exeter e Worcester norteariam o crescimento de alguma agremiação emergente. Enquanto os 13 clubes que se sentem superiores, se realmente o são, nada têm a temer sobre serem rebaixados em uma liga de 14 times com somente 1 rebaixado. O exemplo está do outro lado do Canal da Mancha. É para a França que a Premiership deve olhar para entender como ter não 13, mas 25-30 clubes sólidos.
O sucesso de ligas sem rebaixamento, como no caso de esportes americanos, Super Rugby ou PRO14, são sempre evocados, mas o futebol e o próprio Top 14 oferecem exemplos de como o risco do rebaixamento não é o vilão e nem a liga fechada é a solução. Os modelos têm ambos prós e contras. O que vai ditar o sucesso de cada modelo é justamente como está organizado o esporte no país historicamente.
No caso do rugby inglês, as rivalidades históricas entre os clubes e os localismos tão presentes no futebol foram os motivos da opção pelo sistema de clubes – e não de seleções regionais ou franquias artificiais. Quebrar isso agora a partir de um privilégio a um seleto grupo de clubes oferece riscos altos a todo o sistema, enquanto a solução da França – que tem a liga mais rica do mundo – parece mais lógica.
Eu pessoalmente sou fã do sistema de franquias regionais do PRO14 e do Super Rugby, mas o sistema francês hoje fala mais alto do ponto de vista financeiro e a proposta da CVC e seus clubes passa muito longe do modelo piramidal – focado no desenvolvimento – de Nova Zelândia, África do Sul ou Irlanda.
O que é grave na possibilidade da Premiership se fechar é a ameaça que a liga faz à RFU de romper com a federação e criar uma liga independente que não responda à federação ou ao World Rugby. Isto é, uma volta a 1895 e à criação do Rugby League.
Qual benefício isso traria? Nada além de um conflito suicida entre clubes e seleções nacionais, contra os interesses do esporte que ainda não é grande como gostaria.
Infelizmente o rugby está travado entre a World Rugby e as federações mais tradicionais na tarefa de torná-lo um jogo global. A Liga das Nações com certeza será o passo mais importante na difusão do esporte pelo mundo e decisões como aumentar as chances dos clubes do Championship se tornarem profissionais só vai trazer benefícios tanto para a RFU como para o rugby como um todo.