Tempo de leitura: 12 minutos
ARTIGO OPINATIVO – Unilateralmente, a New Zealand Rugby (a federação de rugby da Nova Zelândia) pôs fim à sua ligação ao Super Rugby para se concentrar em fazer o “seu” Super Rugby mais local. O sentido desta lógica de ideias por parte de uma das nações mais influentes do Planeta Oval parece ao mesmo ténue e estranho, pois como pode uma federação decidir cessar um acordo comercial e competitivo – que tinha duração pré-estabelecida até 2023 -. para estabelecer uma nova competição com o mesmo nome e “ideais”?
O Super Rugby que adveio do Super 15 (e este por sua vez do Super 14 e Super 12), é uma marca que não pertence à NZR mas sim à SANZAAR, uma instituição que foi fundada pelas principais três nações do Hemisfério Sul – e no entretanto passou a 4 com a junção da Argentina – com o propósito de negociar, organizar e fomentar esta liga transcontinental para além do Rugby Championship (antigo Tri-Nations), o que abre desde logo um ligeiro problema no discurso e atitude por parte da direção neozelandesa. Mas antes de explorarmos a questão do nome e marca dada a uma das competições mais apaixonantes de qualquer desporto, é importante perceber o porquê desta cisão, as consequências diretas para quem fica de fora (e dentro), o que altera na estrutura do rugby mundial e, finalmente, o que revela da atitude e postura geral de cada país envolvido nesta situação.
O PORQUÊ
Desde 2018 que se percebeu que algo não estava bem na gestão da SANZAAR, especialmente no Super Rugby, abrindo-se uma intensa discussão interna em relação ao futuro da competição, em especifico se os japoneses do Sunwolves deviam permanecer ou não. A South Africa Rugby (federação sul-africana) só permitia a manutenção da franquia nipônica se estes pagassem uma quota ainda maior do que aquela que já pagavam, impondo assim um timbre negativo e ácido na mesa de negociações.
Apesar da falta de vontade dos sul-africanos em permitir a continuação do Sunwolves, a verdade é que não foram os únicos a ter uma atitude baixa, pois a Nova Zelândia nada fez para demovê-los, a Austrália também optou pelo silêncio e a SANZAAR, dominada pelos interesses nacionais de cada um destes blocos foi forçada a aceitar o despejo dos japoneses. É possível recuar até 2016, altura em que três franquias do Super Rugby foram praticamente expulsas da competição pelas suas adversárias, o que levou a processos litigiosos entre clubes e federações – no caso específico da Western Force versus Rugby Australia (federação australiana) – e a um tremer total entre as ideias teóricas e as práticas.
Ou seja, nenhuma das federações parecia disposta a realmente pensar no futuro de uma competição conjunta, optando por alinhar num caos total e que foi semeando discórdia, críticas e despeito, pondo quase em xeque o Super Rugby.
Durante os últimos quatro anos, os rumores intensificaram-se, os debates verbalizaram-se de uma forma corrosiva e negativa, com a África do Sul a tentar jogar em dois campos ao mesmo tempo, de forma a garantir o melhor acordo possível para não só garantir a sua sobrevivência mas também conseguir alguma supremacia a nível de decisões e influência na World Rugby e não só… metendo-nos na pele da Nova Zelândia ou Austrália, o sentimento é que o País do Arco Íris estava sem interesse em realmente continuar a contribuir com ideias e propostas, e o melhor cenário passava então por uma saída, como se revelou agora.
O cisma chegou e o Hemisfério Sul dividiu-se por completo, abrindo-se agora uma guerra total para garantir a sobrevivência de cada nação, que vai forçar a mudanças urgentes para tentar reverter parte do impacto desta decisão por parte da NZR.
AS CONSEQUÊNCIAS
O que fará a África do Sul? E a Argentina? As quatro franquias sul-africanas que habitavam no Super Rugby vão ter que rapidamente optar por negociar um contrato com a PRO14, que já tem a próxima época totalmente definida, não sendo possível neste momento exato uma total reformulação das linhas gerais e específicas da liga que é partilhada por escoceses, irlandeses, galeses, italianos e até sul-africanos. Contudo, poderá ser possível reformular Kings e Cheetahs de modo a que estes recebam alguns nomes importantes das franquias dos Sharks, Stormers, Bulls e Lions, de forma a se dar início a um período de experiência e adaptação, para se seguir uma possível entrada em força a partir da temporada 2021/2022, com a introdução das outras equipas sul-africanas na competição. A questão que fica no ar é a situação do calendário, como Victor Ramalho do Portal do Rugby já tinha apontado, pois será necessário uma mudança das datas de realização do Rugby Championship, já que só assim podem contar com os atletas que estão a jogar na Europa.
Outra solução temporária ou mesmo permanente, passa por injetar os fundos das franquias sul-africanas de Super Rugby na Currie Cup e assim elevar o nível da competição para um patamar cimeiro e de grande nível competitivo, construindo uma base ainda mais sólida para o futuro dos Springboks, seja ao nível de sub-20 ou adulto. De qualquer das formas, o fim do Super Rugby força a acionar os planos de contenção, que já estavam em execução devido ao efeito da pandemia SARS CoV-2/Covid-19, oferecendo alguma margem de manobra a uma federação em sérios problemas financeiros, isto devido à instabilidade social, política e econômica vivida na África do Sul, algo que nem a Austrália ou Nova Zelândia padecem. Há outro dado aqui interessante… a Currie Cup é uma marca minimamente apetecível e que tem validade econômica e comercial não só na África do Sul, mas em todo o continente africano.
No caso dos Jaguares e da União da Argentina Rugby, a saída do Super Rugby força-os a avançar para duas vias, que estão interligadas e podem voltar a dar uma bateria de energia fundamental para o futuro da bola oval no país sul-americano: permissão de saída para os jogadores mais emblemáticos para a Europa e Japão, mantendo-os nas convocatórias para os Pumas (algo que entre 2016 e 2019 não aconteceu); e desenvolvimento de uma liga sul-americana mais competitiva, comercialmente inteligível e de competências superiores que poderão envolver as franquias já estabelecidas do Uruguai, Colômbia, Paraguai, Chile e Brasil, que até tinham formulado o SLAR (Super Liga Americana de Rugby).
Isto é, a Argentina volta a apostar na saída dos seus principais atletas para ligas mais competitivas, seja o Top14, Premiership, PRO14 e Top League, possibilitando-lhes jogar a um nível alto, enquanto desenvolve internamente uma série de outros novos nomes apetrechando a seleção principal da Argentina de um elenco profundo e sólido. O investimento poderá ser menos pesado do que aquele aplicado durante uma época de Super Rugby, já que deixa de ter de contribuir com salários elevados às suas estrelas, redirecionando os fundos no sentido a construir um conclave sul-americano de rugby competitivo e atrativo, que depende claro da forma como conseguirem vender o produto.
Estas são as consequências iniciais e mais diretas, existindo as outras que ficam algo esquecidas pela maior parte do público e enumeremos algumas: a Nova Zelândia (e Austrália) perde a ligação ao rugby sul-africano, que foi definitivamente o seu adversário mais importante dos últimos 25 anos, desconectando-se quase por completo da experiência do que é jogar contra estes a um nível regular – efeito sentido também pela África do Sul, sendo que estes indo para o rugby europeu poderão ter contacto com atletas ingleses, franceses, irlandeses e galeses, absorvendo diferentes formas de jogar e trabalhar. O fim do Super Rugby como conhecemos força o desagregar por completo da SANZAAR, pois a instituição supra continental está arredada para um papel mais de observador do que decisor, não tendo qualquer importância nas decisões de cada federação, como se viu pela saída da NZR do Super Rugby.
Comercialmente, pode ser uma boa decisão… dependendo se a NZR sabe trabalhar o produto, algo que não foi competente o suficiente para o fazer durante estes 25 anos de Super Rugby. É de estranhar o empenho da instituição neozelandesa em querer desenvolver uma espetacular competição trans-tasman (o nome advém do mar de Tasman que banha tanto Nova Zelândia e Austrália) quando a própria não se envolveu para potenciar um produto já estabelecido e reconhecido por tudo e todos, optando por reiniciar todo um sistema e estrutura. Porque é que fá-lo? Para tomar controlo das operações, impondo assim o seu domínio na Oceania, já que as conversações com a Austrália são de querer limitar o número de franquias australianas e de reorganizar quase por completo com a lógica comercial e econômica do rugby nessa região.
A Nova Zelândia sente segura deste seu projeto devido a três pormenores: o facto do público neozelandês e internacional venerar o rugby protagonizado pelas franquias kiwis, consideradas as mais emocionantes de ver jogar; a pandemia atual forçou uma paragem total na indústria desportiva, no qual o rugby não escapou, fazendo com que o poderio econômico europeu esmorecesse pelo menos durante a próxima temporada – e possivelmente a seguinte -, possibilitando pôr uma pausa no aliciamento dos seus jogadores com contratos altamente rentáveis; e que a proximidade com as suas congêneres da Austrália e Ilhas do Pacífico, possibilite montar uma competição não da mesma proporção, mas de uma em que o controlo seja totalmente seu, partilhando essa ideia com os seus adeptos.
Todavia, não deixa de se dar uma cisão pesada, profunda e que acarretará consequências que se sentirão principalmente a longo prazo, observando-se mais uma vez a falta de lucidez e de espírito coletivo por parte de quem dirige o rugby mundial.
O QUE MUDA NO MUNDO DO RUGBY?
O cisma do Hemisfério Sul vai forçar novas divisões na modalidade que ninguém esperava após um Mundial de Rugby 2019 que encheu as medidas a tudo e todos, desmontando-se a união entre África do Sul, Austrália, Nova Zelândia e Argentina para agora se abrir a novas regionalizações da modalidade. A Nova Zelândia volta a repor importância e capacidade de decisão na Oceania, sendo este o novo “farol” de liderança e referência para todos aqueles que apreciem os particularismos técnicos e táticos do rugby neozelandês, australiano, e, possivelmente, fijiano.
A África do Sul tem de optar por três cenários: erguer o rugby africano e torná-lo na sua própria estrutura competitiva de referência, de mudar-se totalmente a nível adulto e profissional para a Europa ou ambos. A Argentina vai centrar a sua atenção no construir de uma América do Sul mais estável na modalidade, oferecendo os seus inputs aos seus parceiros com vista a obter adversários minimamente interessantes, isto a médio prazo, dando força à SLAR e, porque não, tentar estabelecer algum tipo de ligação à MLR para construir uma competição conjunta.
Para a World Rugby passa a existir uma espécie de caos organizado que poderá ser útil em questões de nova legislação e regulamentação, podendo conquistar o interesse da África do Sul e Ilhas do Pacífico (nada garante à Nova Zelândia que estas vão ser fiéis ao projeto encetado pelo Aratipu Report), forçando à Nova Zelândia e Austrália a ficarem encostadas a um “canto”, sozinhas e sem poder de facto geral. Para a Europa este cenário é do mais apetecível possível e explica-se rapidamente por três conceitos: estabilidade organizativa, competição equilibrada e crescimento econômico. A queda do acordo entre as nações do Hemisfério Sul, possibilita à Europa a sobrepor ainda mais, tomando o controlo e domínio, podendo executar o seu modelo para a modalidade a médio e longo prazo, atraindo a África do Sul para o seu lado, podendo assim começar a canibalizar a certa altura a Nova Zelândia.
E, finalmente, há uma nação que está totalmente interessada neste cisma… o Japão. Os altos representantes da Federação de Rugby do Japão sentiram-se enganados pelos seus congêneres do Hemisfério Sul, explicando que houve má-fé em diversos momentos, para além do tratamento que foram alvos entre 2016 e 2019. Com o sucesso do último Rugby World Cup, da ascensão do Japão como um país competente ao ponto de conquistar uma vaga nas quartas de final e de terem uma economia de multinacionais forte, apesar de estar em constante recessão, os nipônicos tomaram a decisão de revolucionar o seu rugby local, passando agora para a profissionalização de uma boa parte dos seus atletas, o que deverá preocupar a Nova Zelândia, Austrália e África do Sul.
Se a Top League japonesa consegue o crescimento pretendido e coloca o calendário de rugby de clubes/franquias ao mesmo tempo que o de trans-tasman, então podemos ter a saída de alguns jogadores neozelandeses e australianos conhecidos, que vão optar por jogar durante um par de anos no Japão para depois volta a “casa”, com o intuito de participar no Mundial. Isto vai ferir o projeto de sempre da Nova Zelândia, de querer ter a sua “mão de obra” sempre presente nas suas competições nacionais, podendo assim estar mais presente no dia-a-dia dos atletas dos All Blacks, direcionando-os no sentido que o staff técnico da seleção deseja. Desengane-se a Nova Zelândia se acha que tem poderio econômico para competir com o Japão, porque não só não o tem como poderá até ser dominada por estes, vendo-se forçada a prescindir de estrelas estabelecidas (Beauden Barrett, Broadie Retallick, etc) ou até de futuros grandes jogadores (Jackson Hemopo, por exemplo).
Vai-se der então uma total reformulação dos poderes no Mundo do Rugby, lançando a Europa no sentido de se sentar no “trono” no que toca a fazer novas leis, competições e não só, enquanto as nações do Hemisfério Sul se dividem e ficam entregues a si próprias, sem noção da sua “pequenez” desportiva e econômica à escala mundial – o nacionalismo exacerbado é idêntico ao que se viu na propaganda de pró-Brexit, que em tudo é uma falsidade começando pelo facto que o Império Britânico já não existe e que o Reino Unido não é visto como um parceiro econômico interessante, quando comparado com a Europa, Canadá, EUA ou Japão.
Contudo, há aqui uma questão (entre várias) que escapa à NZR, não por distração mas por arrogância: o nome Super Rugby.
SAY THE NAME: SUPER RUGBY
A marca Super Rugby não pertence individualmente a nenhuma das nações participantes na competição. Não é da Nova Zelândia, nem da Austrália, nem da África do Sul… é da SANZAAR, ou seja, é de todos e de ninguém ao mesmo tempo. A África do Sul pode perfeitamente vetar a continuação do uso da marca pela Nova Zelândia caso deseje, levando o assunto para os trâmites legais, iniciando uma autêntica guerra comercial que merece ser disputada, até porque não há dúvidas que a combinação de palavras “Super Rugby” vende.
A África do Sul pode até se juntar ao PRO14 e conseguir convencer a direção dessa competição a alterar o nome para “Super Rugby: PRO16/18”, mudando toda a atenção para si e tirando essa característica ao projecto trans-tasman. Mark Robinson, os consultores que fizeram o tal report e a velha guarda que estiveram por detrás desta decisão, não têm noção das complicações que poderão vir a surgir no futuro, pondo em marcha uma luta por poderes locais e internacionais, que pode vir destruir por completo com tudo o que de bom foi alcançado pelo Super Rugby.
Entre os vários comentários e críticas que foram professadas por comentadores, adeptos e lendas, é que o Super Rugby era uma confusão e não fazia sentido. E a resposta é simples: leiam, entendam o que era o sistema competitivo e percebam que dava tudo aquilo que se quer ver num desporto físico e emotivo: troca de filosofias de jogo, jogadores de âmbitos diferentes e uma partilha de informações que ofereceram ao Hemisfério Sul algum domínio durante uma parte deste século XXI, a nível de selecções. O problema do Super Rugby, que se aguçou nos últimos anos, era o factor económico e de calendário.
Economicamente as federações e franquias estavam a ter pouco retorno para o investimento realizado, e isto se deveu à fraca comercialização da competição e de como internamente o produto foi vendido, com preços exorbitantes tanto nos bilhetes, ou de escolha de estádios demasiado “grandes” – ou seja, mais custos – quando podiam optar por actuar em terrenos de jogo mais “reduzidos” – como fazem os Crusaders ou Chiefs, por exemplo. E o calendário, ou antes, os horários que eram tóxicos para o público que estava dentro da competição, com os adeptos argentinos a terem que acordar ou se deitar a horas nada atractivas, não vendo os jogos em directo e assim não se expandindo o produto, algo que pode ser igualmente partilhado com cada uma das nações envolvidas nesta liga trans-continental.
Nunca houve solidariedade, consenso ou tentativa de criar uma certa igualdade partilhada por todos os participantes, optando-se pelo caminho do conflito pouco saudável que precipitou divisões e discórdias, quando era fundamental que se passasse o contrário. E esta crítica também tem de ser partilhada para com o público de cada nação, que na sua larga maioria optaram por ter um discurso supra-nacionalista que no mundo globalizado de hoje não faz sentido, ainda por mais quando a Nova Zelândia vive das exportações e turismo, não podendo se fechar sobre si e viver pacificamente no seu canto.
Efectivamente, a Nova Zelândia aproveitou o momento para dar um passo em frente, com o objectivo posto em dominar a Oceania e a lançar a África do Sul num pântano denso em relação ao que fazer com as suas franquias, tentando sair na frente com já a sua própria competição do Super Rugby Aotearoa. Viram que tudo e todos estavam a seguir atentamente a liga, e sentiram que eram o produto mais importante de todos dentro do Hemisfério Sul, esquecendo-se que neste momento não há qualquer competição de rugby a ser jogada, não tendo competição de mercado. A questão é quando o rugby europeu voltar já em Agosto e começar a se sobrepor novamente no que toca à econômica desportiva, sem esquecer o impacto que o Japão vai ter já em 2021, podendo estes dois fatores afetar por completo com o plano da NZR em ser a superpotência a nível de clubes que não o é.
O Super Rugby acabou e seria de incrível mau tom que a NZR, AR ou SAR continuassem fazer uso de uma marca que não é sua individualmente, mas seria natural que todos sentissem direito a usar a nomenclatura e o peso da marca perante a arrogância generalizada, o discurso nacionalista e a postura de que são mais superiores do que qualquer um dos seus adversários.